domingo, 2 de agosto de 2009



Cosmococa - programa in progress:
de Hélio Oiticica e Neville de Almeida





Cosmococa - programa in progress:
heterotopia de guerra

por Beatriz Scigliano Carneiro

Cosmococa - programa in progress: de Hélio Oiticica e Neville de Almeida inclui nove BLOCOS-EXPERIMENTOS, ou BLOCO DE EXPERIÊNCIAS – in COSMOCOCA, elaborados de 13 de março de 1973 a 13 de março de 1974, e identificados pela abreviatura CC, seguida de um número, marcando a seqüência cronológica da sua invenção. Cada bloco se compõe de uma série de slides ― fotografados no ato da brincadeira de espalhar carreiras de cocaína nas capas de discos, livros e outras superfícies —, de uma trilha sonora, de textos, de uma proposta de atuação do público em um ambiente determinado e de um conjunto de fotos e pôsteres – reprodução dos slides – para serem comercializados separadamente.

Para cada bloco-experiência há uma ficha com especificações técnicas básicas, recomendações para projetar os slides, para a trilha sonora, para o set da performance e para atividades dos participantes. Foram previstas caixas destinadas ao comércio contendo as reproduções dos slides e da trilha sonora de cada bloco, afora textos e instruções para a montagem. A duração da apresentação dos slides gira em torno de 20 minutos. Depois tudo começa outra vez. Nas exibições privadas deverão ser feitas adaptações ao espaço local, seja apartamento, seja jardim, e sugerem verdadeiras festas.

CC1 TRASHISCAPES, CC2 ONOBJECT, CC3 MAILERYN, CC4 NOCAGIONS, CC5 HENDRIX WAR são os blocos realizados junto com Neville. Na seqüência veio CC6 COKE’S HEAD SOUP, de 25 de setembro de 1973, proposta com Thomas Valentim, parodiando o título do álbum de Rolling Stones, Goat’s Head Soup. Este bloco não contou com desenhos feitos com coke-tracks, mas com imagens do reflexo translúcido de cocaína espalhada na capa do vinil, gerando o que HO denominou cocamist devido à semelhança com névoa. O bloco CC7 seria elaborado com Guy Brett, crítico de arte inglês, amigo de Hélio, mas não saiu do esboço. Depois, veio CC8 MR.D or D OF DADO, com a colaboração do escritor Silviano Santiago. Nesta não há cocaína, mas sim um jogo de luz e reflexos no espelho. Por fim, para comemorar um ano de Cosmococa, a proposta de 13 de março de 1974: CC9 COCAOCULTA RENÔ GONE começou a ser empreendida junto com Carlos Vergara, mas não foi completada. Homenageava Renô de Souza Mattos, morador do morro de São Carlos, morto em fevereiro daquele ano.

Este programa forma uma sessão de um plano de trabalho maior de Oiticica, que ganharia a forma de um livro, intitulado Newyorkaises, reunindo textos e imagens de experiências e proposições diversas concebidas no seu “abrigo do norte”, como Hélio apelidou New York. O subtítulo ‘in progress’ mostra que o Programa não se situa como obra fechada e contamina textos e outros trabalhos, ampliando-se para além dos blocos.

Cosmococa é Programa, e não um projeto, pois aglutina proposições experimentáveis. Projeto associa-se a visões utópicas de construção de um futuro. Programas não idealizam ações e obras para o futuro, mas anunciam a experimentação. Remetem a roteiros para experiências e são descritos por Gilles Deleuze quando presentes em escritores de língua alemã:

“Já não há o infinito relatório das interpretações [Deleuze refere-se aqui à literatura francesa], mas processos acabados de experimentação, protocolos de experiência. Kleist e Kafka passavam seu tempo fazendo programas de vida: os programas não são manifestos e, menos ainda fantasias, mas meios de orientação para conduzir uma experimentação que ultrapassa nossas capacidades de prever”. (G. Deleuze, C. Parnet. Diálogos, São Paulo: Escuta, 1998, p. 61)

1. Coca cósmica

Os dois inventores de Cosmococa conheceram-se em 1968, quando Neville, após ter seu primeiro longa-metragem, Jardins de Guerra, mutilado pela censura, promoveu uma sessão fechada para cineastas e amigos. Hélio impressionou-se especialmente pelo uso dos pôsteres na estrutura do filme e se apresentou para conversar. Anos depois, propuseram fazer um filme, no entanto, desencontros diversos acabaram por deixar Neville sozinho com a realização de Mangue-Bangue, apesar da intenção de trabalharem em dupla já nesse filme. Reencontraram-se em New York, em 1973, na ocasião em que Mangue-Bangue foi exibido no MOMA. Sobre este filme escreveu Hélio:

MANGUE-BANGUE não é documento naturalista vida-como-ela-é ou busca do poeta artista nos puteiros da vida: é sim a perfeita medida de frestas-fragmentos filmes-som de elementos concretos [...] NÃO NARRAÇÃO montagem corte de planos takes deslocados fim do conceito de cinema verité já que o CINEMA É VERDADE e não representação da verdade [...] o q é a verdade, anyway? (MANGUE-BANGUE, Programa Hélio Oiticica, organizado por Lisette Lagnado, Tombo nº. 0477/73)

A narração no cinema e a busca naturalista de reproduzir eventos com veracidade incomodavam a ambos. Não interessava a representação do tempo pela imagem movimento que reproduziria a passagem sucessiva dos momentos ao mostrar um “antes e depois” de uma linha evolutiva na qual se desenrolava uma narração. Após muita conversa, se ativeram ao que de fato queriam, realizar uma experiência de NÃO-NARRAÇÃO, de NÃO-DISCURSO, contrariando a expectativa de contar uma história, de fazer cinema. “Eu e Neville quase q mão a mão desviamos do projeto de mais um filme para o primeiro CC1: em BABYLONESTS nos confins do LOFT 4: quanta leveza e q força certa emanam deste simples shift: não ater-se ao q se acha q deva ser e q não se quer fazer: nem querer audiovisual de ranço professoral (BLOCO-EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica Tombo nº. 301/74)

Cosmococa fora inicialmente o título de uma idéia de Neville de Almeida para realizar um projeto cinematográfico. Neville havia pensado, em outro momento, em fazer um filme só com slides, com base na constatação de que cinema afinal é constituído de ‘motion pictures’, (Depoimento de Neville de Almeida à autora em 11 de junho de 2003). A projeção de slides, como se fosse uma película quadro a quadro, revelaria este segredo da magia do cinema e o arbitrário da construção da percepção do tempo. No encontro com Hélio em New York, a idéia atualizou-se em quasi-cinema em um trabalho que não é espetáculo, não é narrativa, nem um enredo contado quadro a quadro. “EU jamais teria a necessidade de inventar esse tipo de experiência não fossem as longas conversas e caminhadas pela linguagem limite criada por MANGUE-BANGUE de NEVILLE”, afirma Oiticica. (BLOCO-EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica . Tombo nº. 301/74)

Neville desenhou as carreiras de coca sobre as imagens escolhidas para estes cinco blocos e Hélio as fotografou montando a série de slides. Estes desenhos com cocaína foram nomeados de “Mancoquilagem”, Maquilagem + Manco Capac, o mítico herói civilizador dos Incas que trouxe a folha de coca para seu povo. Se se usam tintas fedorentas e tudo que é merda nas obras de arte (plásticas) por que não a PRIMA [apelido carinhoso da cocaína dado por Hélio] tão branca, brilho e tão afim aos narizes gerais? (BLOCO-EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica Tombo nº. 301/74). Coube também a Neville a edição do som e a trilha sonora. Juntos elaboraram o set de cada bloco, destinado ao público para a fruição do deslizar dos slides. O que seria cenografia de uma tomada de cena de cinema transformou-se no que Hélio denominava “ambiente” e hoje seria uma "instalação".

Estes blocos experiências significaram, segundo Hélio “um avanço estrutural na obra de NEVILLE e a aventura incrível no meu afã de INVENTAR – de não me contentar com a ‘linguagem –cinema’ e de me inquietar com a relação (principalmente visual) espectador-espetáculo (mantida pelo cinema - desintegrada pela TV) e a não ventilação de tais discussões:” (BLOCO -EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica Tombo nº. 301/74) Inventaram um trabalho que também desafia a passividade da platéia cinematográfica ao convidá-la a realizar ações dentro desta caixa de imagens, expressão de Neville de Almeida.

A coca cósmica: trilhas de pó conjugam-se umas com as outras interligando elementos dos diversos blocos, fazendo mundo. A palavra kosmos era um termo específico da prática jurídica da Grécia antiga com o sentido da reta ordem da Cidade Estado. Com o filósofo Anaximandro de Mileto (609/610 a.C. - c. 547 a.C.) a noção de cosmos se projetou na natureza e adquiriu o significado mais próximo do que conhecemos hoje. (Jaeger, W. Paidéia: a formação do homem grego, tradução A. Parreira, 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 202). O cosmos grego apareceu como uma rigorosa construção geométrica de elementos físicos, palpáveis, tal qual a construção da vida na polis.

No entanto, ao ser traduzida para o latim, kosmos se tornou Universo, se tornou mundo como totalidade, um princípio geral, universal, e assim “se afastou das sensatas particularidades que sempre foram sua referência. Pois cosmos é um termo estético”, com a acepção de “adequação” (fitting order). Em outro grupo de significado, cosmos também se refere a ornamento, a decoração, a enfeites femininos, cosmética, acentuando o sentido sensorial e sensual da palavra. (Hillman, James. From Universe to Cosmos. Cosmo, Life, Religion: beyond humanism. Nara: Tenri University, 1988, p. 287-8)

“NEVILLE ao inventar COSMOCOCA: nome-mundo: propôs não um ‘ponto de vista’ mas um programa de INVENÇÃO-MUNDO.” (BLOCO -EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica. Tombo nº. 301/74). A coca funcionou como cosmética em desenhos gráficos sobre superfícies de capas de livros e discos, jornais e pôsteres, a mancoquilagem atravessando os blocos. A maquilagem com o pó refinado da folha de Erythoxylon coca saturou cada gesto até se tornar imperceptível, COCAOCULTA, na seqüência dos blocos. O sentido cósmico da coca se joga nestas linhas que ultrapassam a matéria branca da dádiva de Manco Capac aos nobres incaicos, mas não deixam de atualizar seus elementos ancestrais ao deslizar pelas imagens e sons.

Linhas de coca, que se alargam em manchas brancas, que se afinam pela ação da lâmina, que se ocultam, que desfazem os rostos, que delineiam máscaras sobre superfícies, linhas que devêm mundo: É conjugando, continuando com outras linhas, outras peças que se faz um mundo, que poderia recobrir o primeiro, como em transparência. Aqui se encontra o procedimento dos poetas pintores chineses, apontado como cósmico, pois estes não imitam, nem calculam proporções estruturais, mas retêm as linhas e os movimentos essenciais da natureza. Assim se fazem mundos, quando as linhas encontram suas “vizinhanças e zonas de indiscernibilidade”. (G. Deleuze; F.Guatari, Mil Platôs, v. 4, trad. Sueli Rolnik, São Paulo: 34, 1997, p.73)

Flor, Shi tao (1640-1718)

Cosmococa apresenta elementos contíguos e simultâneos, com a intenção de embaralhar com joy as ordens do mundo (comportamentos e condicionamentos), nos termos de Hélio (BLOCO -EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica. Tombo nº. 301/74) Cosmos carrega o sentido de ordem do mundo. O Programa Cosmococa: programa anti-cosmos, invenção de cosmos outros, combate à ordem do mundo ao captar forças que atualizam o porvir.

Estas proposições ficaram guardadas por vinte anos, não apenas pelo uso da cocaína como pigmento e fonte de prazer — ele e Neville foram usuários sem culpas —, mas pelo conjunto da invenção que embaralha as fronteiras dos campos das artes, os limites entre público e privado, com muito humor. JOKE-EMBARALHAR: rir da seriedade dos conceitos: dos assuntos graves: só pelo JOKE podem-se SCRAMBLE (e portanto INAUGURAR SITUAÇÕES – INVENÇÃO) ROLES-MUNDO. (BLOCO -EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica. Tombo nº. 301/74)

A primeira montagem pública foi realizada em Roterdã, Holanda, em 1992, na retrospectiva itinerante de Hélio Oiticica. No Brasil, foi montado CC5 HENDRIX-WAR em 1994, na Galeria São Paulo, na capital paulista. Em 1998, o bloco CC3 no Centro Hélio Oiticica, Rio de Janeiro. Em 2003, o bloco CC6 COKE’S HEAD SOUP foi instalado no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro como parte da exposição “Movimentos Improváveis: o efeito cinema na arte contemporânea”. Neste mesmo ano, foram apresentados na Pinacoteca de São Paulo, quatro blocos dos cinco realizados com Neville e, em uma galeria, as fotos destinadas à venda. “O que é isto? Trinta anos de espera! Por incrível que pareça, esta demora...” exclamava Neville de Almeida na ocasião destas mostras. Estes quatro blocos são aqui analisados com mais detalhes, pois foram estes que eu pude experimentar em exposições em 1994, 1998 e na Pinacoteca de São Paulo em 2003. Dois anos depois, os cinco blocos realizados com Neville foram exibidos no Centro Hélio Oiticica.

A importância de Cosmococa - programa in progress tem sido avaliada recentemente. Alguns blocos CC são apresentados e reapresentados em vários locais do mundo. Dan Cameron, curador do New Museum of Contemporary Art de New York, afirmou que, sem considerar este trabalho de Hélio e Neville, a história da arte recente ficará inconclusa:

“Pois se o trabalho de Hélio Oiticica representa um dos últimos paradigmas importantes da arte do século XX, e se Cosmococa e as instalações Quase-cinema caracterizam a fase culminante de seu desenvolvimento, então se conclui que a história da arte definitiva dos últimos cinqüenta anos não foi ainda escrita” (D. Cameron, Through the Glass, Darkly. C. BASUALDO. Hélio Oiticica: Quasi-cinemas. Berlin: Hatje Cantz, 2001, p.38)

2. Heterotopia.

CC1 TRASHISCAPES (paisagens residuais), o primeiro bloco, inventado em 13 de março de 1973. O público se acomoda em colchões e travesseiros e é convidado a lixar a unha, postura preguiçosa de “pouco se lixando”. No escuro, por um minuto, apenas o som de forró: Ah! Isto aqui tá muito bom. Isto aqui tá bom demais..., começa então a projeção dos slides, ocupando duas paredes inteiras, uma em frente da outra. Fotos diversas de três séries: série do rosto de Buñuel, capa do New York Times Magazine de 11 de março de 1973. A série do pôster preto e branco de Luis Fernando, ator amigo de Hélio, vestindo Parangolé 30 Capa 23 M’Way Ke, da série Parangolé realizada em Nova Iorque. A série da capa do álbum de Frank Zappa: Weasel Ripped my Flesh (doninhas rasgaram minha carne): um desenho do rosto de um rapaz “certinho” arranhado por uma doninha que ele segura como se fosse uma máquina de barbear. Uma foto de Neville, ao telefone, com camiseta listrada. Nos slides, aparecem objetos diversos: espelho redondo, canudos de dólar, facas, navalhas, cinzeiros cheios, lata de filme. Linhas brancas traçadas sobre as imagens das séries, sobre o pôster, sobre o rosto de Buñuel, sobre a capa do disco, linhas compostas de finas carreiras de cocaína. A trilha sonora conta com trechos do baião de Dominguinhos e Luis Gonzaga, trechos de Pífaros de Caruaru, de Stockhausen, de Hendrix, de sons da rua.

CC2 ONOBJECT, de 12 de agosto de 1973. Espuma grossa no chão, coberta com tecido branco; bolas, cubos, cones, cilindros azuis, vermelhos, verdes, amarelos todos de espuma, espalhados pelo ambiente. O convite é para dançar, pular, brincar com as formas geométricas. Quatro paredes com projeções. Começa-se enquadrando apenas a face de Yoko Ono na capa do livro Grapefruit; a book of instructions, edição americana de 1972, mancoquilada em desenhos diversos, depois vão aparecendo, slide a slide, o livro de Heidegger What’s a thing, vindo do lado esquerdo, seguido por Your Children de Charles Manson, o mandante do assassinato de Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski, e dos hóspedes que estavam na casa, crime famoso de 1969, presente ainda na mídia nos anos 70. O livro Your Children, lançado naquele ano de 1973, transcreve integralmente a declaração processual do acusado. A trilha sonora foi retirada do álbum duplo Fly de Yoko Ono. Um telefone toca alto. O som, os objetos e a espuma tornam fácil aceitar o convite aos saltos, à dança e ao brincar com os outros participantes. Pisa-se com esforço sobre um chão de espuma que desestabiliza e acolhe a queda.

Imagem de CC3 Maileryn. Cortesia Projeto HO e Neville D´Almeida

CC3 MAILERYN, de 16 de agosto de 1973. No chão de areia de forma irregular como dunas, cobertas de vinil transparente, flutuam bexigas em amarelo e laranja. Os participantes são convidados a deitar e rolar, arrastar-se e jogar as leves bolas amarelas e laranjas para o alto. Oiticica exige que as pessoas entrem no ambiente sem sapatos, sem instrumentos ou ornamentos que possam cortar o plástico do chão. Quatro paredes e o teto com face de Marilyn Monroe da capa do livro de Norman Mailer lançado em 1973. As fotos foram tiradas no “tempo real” da seqüência da publicação sendo desembrulhada e a imagem da atriz mancoquilada. O livro aparece primeiramente embalado por papel celofane que vai sendo cortado por uma tesoura, enquanto que a mancoquilagem com cocaína vai se alterando, ora leve, ora carregada, quase grotesca. Sugere uma narrativa: uma imagem fechada por uma película de celofane transparente que aos poucos vai sendo revelada e, simultaneamente, modificada por grossas linhas de pó. Na trilha sonora, Yma Sumac, cantora popular peruana famosa nos anos 1960, especialmente pela voz de timbre único, capaz de atingir entre 4 e 5 oitavas na escala musical, apresenta canções referentes aos rituais incaicos. Não é uma cantora de folclore latino, ela dá um tom de dramaticidade hollywoodiana para estes temas referentes aos incas.

Imagem de CC5 Hendrix-War. Cortesia Projeto HO e Neville D´Almeida

CC5 HENDRIX-WAR, de 26 de agosto de 1973. Slides da capa do disco War Heroes, lançado postumamente em 1972, com a face de Hendrix mancoquilada em todas as paredes e no teto. Alguns desenhos de cocaína sugerem borboletas ocultando e revelando os traços do rosto em outro plano. Caixas com fósforos queimados aludem ao gesto de pôr fogo na guitarra no Festival de Monterey em 1967. Redes espalhadas pela sala aludem ao nordeste do Brasil. Os pés leves sem tocar o chão, flutuar. Apesar da trilha sonora ser Hendrix, a proposta é relaxar o corpo no casulo-rede. A experiência não aponta para uma regressão a um útero e sim para um encasular-se provisório e passar da sensação de peso à leveza. “When things get heavier, call me helium” (quando as coisas ficarem pesadas demais, me chame de hélio), disse Hendrix em uma entrevista pouco antes de sua morte em setembro de 1970 .

Helio disponibiliza sensações táteis, auditivas, cinestésicas e visuais em determinado momento e em determinado local e propõe ações a serem realizadas pelas pessoas. Nessa arte solicitam-se experimentações sinestésicas com o corpo, para além da visão contemplativa, aglutinadas em bloco.

Os blocos CC aglutinam elementos de diversas procedências e com apelos sensoriais diversos que acontecem com a presença das pessoas participando e se deixando invadir pela experiência. Há uma constante preocupação de Hélio em incorporar as pessoas como performers nas obras, para isso sempre apresenta em seus programas ambientais algum modo de acolher ativamente este espectador dentro dos trabalhos. “Havia um espaço para as pessoas! Ninguém havia pensado em um espaço para as pessoas em termos de arte...” (Depoimento de Victor Acconci sobre a exposição Information, no MOMA NY, 1970, na qual Hélio apresentou os Ninhos, in Heliofonia (video), M. Benisson, 2003).

Em uma conferência de 1967, em um encontro de arquitetos, Michel Foucault apresentou uma comunicação, Dos espaços outros, publicada apenas em 1984, na qual constatou que havia, em culturas e em épocas diversas, espaços específicos situados dentro dos espaços sociais cotidianos com funções diferentes destes e muitas vezes opostas. Denominou-os heterotopias.

Heterotopia consiste em um conceito procedente das ciências biológicas e médicas, indicando órgãos ou tecidos que ocupam outros espaços que não aqueles que lhes seriam destinados. Foucault empregara esse termo inicialmente em questões ligadas à linguagem. No livro As Palavras e as Coisas (1966), citou um texto de Jorge Luis Borges sobre uma categorização de animais de uma enciclopédia chinesa, na qual os animais se classificariam em: “a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação ...” Essa distribuição lhe causou riso e a seguir o mal estar de uma suspeita de que existe

“uma desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito; e importa entender esta palavra no sentido mais próximo da etimologia: as coisas apresentam-se nessa série ‘deitadas’, ‘colocadas’, ‘dispostas’ em sítios a tal ponto diferentes que se torna impossível encontrar para elas um lugar acolhedor, definir sob uma e outras, um lugar que seja comum a todas.[...] As heterotopias inquietam, sem dúvida, porque minam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque quebram os nomes comuns ou os emaranham, porque de antemão arruínam a sintaxe e não apenas a que constrói as frases mas também a que, embora menos manifesta, faz manter em conjunto (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. É por isso que as utopias permitem as fábulas e os discursos, elas situam-se na própria linha da linguagem; [...] as heterotopias (como as que encontram tão frequentemente em Borges) dessecam o assunto, detêm as palavras sobre si mesmas, contestam, desde sua raiz, toda a possibilidade de gramática; desfazem os mitos e tornam estéril o lirismo das frases “. (M.Foucault. As palavras e as coisas, Trad. Antonio R. Rosa. São Paulo: Martins Fontes, s/d. p.5-6)

A seguir, esta noção foi deslocada da referência à linguagem para um uso voltado à análise do espaço. Foucault se interessou pela descrição de lugares com a propriedade de se relacionar com todos os outros espaços de um modo que neutralizariam, suspenderiam ou inverteriam o conjunto de relações refletido ou designado por eles. Tais lugares foram classificados em dois tipos: as utopias – locais sem lugar real, projetados para um futuro ou associados a um passado, sempre em referência a um presente que se quer negar, e as heterotopias – locais reais experimentáveis, mantendo porém uma configuração isolada, nos quais a vida social pode aparecer contestada, invertida ou reduzida a apenas alguns de seus aspectos. Espaços vividos não são vazios que poderiam ser ocupados por coisas e pessoas estanques em si mesmas, mas um conjunto de relações que definiriam localizações irredutíveis umas às outras.

Nessas heterotopias se reuniriam resquícios de vários outros espaços e tempos formando um conjunto que se deslocaria do cotidiano, permitindo experiências paralelas diversas. Foucault reiterou que o tempo era uma obsessão do século XIX e que “nossa época atual será talvez a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, na época do perto e do longe, do lado a lado, do disperso”. (M.FOUCAULT. Des espaces autres , Dits et Ecrits IV, Paris: Gallimard, 1994, p.752.)

As heterotopias são capazes de receber funções diferentes das que desempenhavam nos primórdios de sua constituição em decorrência de mudanças culturais diversas. Também se caracterizam por algum tipo de sistema de entrada e saída, devido a um certo fechamento em relação a um espaço maior. Outra característica se refere à aptidão em “justapor em um único lugar real vários espaços, vários locais que são incompatíveis neles mesmos”. (Idem, Ibidem, p. 758) Servem aqui como exemplos o teatro, o cinema e a mais antiga heterotopia caracterizada por locais contraditórios justapostos: o jardim.

A heterotopia se contrapõe ao espaço cotidiano, está presente, não projeta nenhuma fábula. As heterotopias incomodam pois desafiam as representações e a imagem do pensamento ao se comporem por justaposições de coisas não usualmente próximas em conjuntos precários. As utopias, por sua vez, deslocam-se do espaço real onde se vive e o substituem por uma esperança de futuro de harmonia e felicidade, ou, então de catástrofe. Um projeto situa-se na série da utopia, um programa na série da heterotopia.

As heterotopias têm ligação com as heterocronias, resultantes da découpage do tempo, marcadas pela ruptura com o tempo tradicional, pelo tempo da festa ou pelo tempo acumulado. Em suma, são rupturas na vida ordinária, desvãos. São contra-espaços, interpenetrados pelos espaços que contestam ou se contrapõem. De um lado, podem consistir em formas evidentes de dominação delimitadas em espaços reais, como por exemplo, prisões, campos de concentração – criados em nome de um bem-estar da sociedade, da regeneração do criminoso ou de purificação pelo castigo. De outro, podem se referir a situações de prática de liberdade, campo aberto para experiências reais em que os corpos experimentam o que podem.

Cosmococa - programa in ‘progress’ pertence à série das heterotopias de realizações libertárias. Amplia a noção de heterotopia para fora de uma perspectiva estritamente espacial ao programar uma experiência do tempo por meio da vivência de ritmos. Não um tempo utópico de um ‘futuro melhor’ ou referente ao passado, mas ao tempo do que se desenrola naquele espaço, vivenciado no ato de mover-se desacelerado em redes e chão de espuma, ou lixando unhas, ou dançando ou rolando em areia plastificada, acompanhando ou não música e imagens. Estas “caixas de imagens” fazem com que se experimente o tempo quase como no cinema.

O programa Cosmococa incorpora trajetos por trilhas entre os elementos do espaço a serem percorridos com ritmo de cada um e exige uma atenção à duração do movimento de imagens projetadas. Principalmente faz com que a heterotopia seja analisada como bloco de devir, ou seja, seja analisada não pela relação entre elementos componentes, mas pelo campo de forças potencializadas pela experimentação.

3. Invenção

“Eu não me transformei em um artista plástico, eu me transformei em um declanchador de estados de invenção”. Declanchar, palavra inventada derivada do francês, déclancher com o sentido de destravar, provocar. Déclancheur também significa disparador de máquina fotográfica. Oiticica preferia o termo invenção à palavra criação. Criar, segundo Oiticica, obedece a um impulso naturalista de realizar formas originárias, que prescinde da experiência. Por outro lado, inventar decorre da experimentação e de estudo, não surge espontaneamente, mas resulta de necessidades sentidas, de exigências postas pelo percurso e vivência do inventor ou de seu grupo social. José Oiticica Filho, o pai de Hélio foi, além de entomólogo, um inventor. Nos anos 1940, inventou um equipamento para fotografar insetos. Seu trabalho lhe rendeu prêmios como cientista e fotógrafo e uma bolsa Guggenheim em Washington.

Na arte, um dos usos da noção de invenção mais divulgados é o Ezra Pound. Em Como ler, escrito em 1928, o poeta italiano apresenta uma classificação, não das obras, mas dos seus produtores, baseada no critério da invenção. Privilegia a noção de invenção em detrimento de criação inspirado pelo movimento futurista de apologia à máquina e à tecnologia. Os inventores são aqueles que desbravaram um novo processo em arte, uma linguagem nova, os que praticamente fundaram um estilo. Depois do inventor, surge o mestre, a rara categoria de poeta capaz tanto de inventar, como também aperfeiçoar outras invenções a um alto nível de excelência. O melhor poeta, de acordo com Pound, qualifica-se como o melhor fabbro (metalúrgico, operário) e não melhor criador. Seria aquele que, com muito trabalho, usa a linguagem com o máximo de eficiência, ou seja, carrega a linguagem de alto grau de sentido. Depois deste ápice, a qualidade da poesia dentro de uma mesma série inventiva, declina, com mais quatro categorias de poetas: o diluidor; os bons escritores, mas sem qualidades salientes; os beletristas e, por fim, os lançadores de modas transitórias. (E.Pound, A arte da Poesia, trad. H.L. Dantas; J. P. Paes, 2.ed, São Paulo: Cultrix, 1988, p.35-36)

O destaque dado à invenção encontra o fluxo de uma retomada recente nas ciências sociais desta noção e de suas implicações (entre outras referências: http://multitudes.samizdat.net/), que tiveram presença significativa na sociologia durante a passagem dos séculos XIX e XX, com os estudos do francês Gabriel Tarde (1843-1904). A lógica social era considerada por este autor como uma modalidade de produção de vínculos, de laços sociais. Vínculos baseados em imitação — transmissão de crença e vontades de um indivíduo a outro, entre grupos, de um grupo a outro — e modificados pelas invenções, não de objetos, mas de padrões sociais, comportamentos, estilos de vida. Invenção seria o cruzamento de séries imitativas, ordenadas de modo inédito, em resposta a uma questão ou necessidade social, mantendo assim a sociedade em transformação. A qualidade de uma invenção se mostra pelo grau de resolução de um problema ou de manifestação de alguma experiência e, também, pelo novo fluxo imitativo que inicia. O conceito de invenção atualizado permite que se analise a vida social, não no seu aspecto conservador de padrões e estruturas, mas na busca das forças inovadoras e disruptivas, as quais encetam mudanças.

O inventor, ou os inventores, não ‘criam’ o invento, aglutinam diversas injunções, inclusive o plágio de algum elemento, e propiciam o encontro de fluxos imitativos existentes, tal como numa assemblage. No caso de Cosmococa, o desenho com cocaína era uma brincadeira, uma paródia de atitudes de usuários que distribuíam carreiras em cima de capas de livro e discos antes de cheirá-las e também uma alusão irônica a artistas preocupados em montar carreiras com seus desenhos: “... é JOGO-JOY: nasceu de blague de cafungar pó na capa do disco ZAPPA Weasel ripped my flesh: quem quer a sobrancelha? – e a boca?: Sfuuuum!” (BLOCO -EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica, Tombo nº. 301/74). Os gestos de mancoquilar aparecem fotografados nos momentos-frame. Gestos que criam rastros como plágio da imagem dada, rastros que se cafungam e assim desaparecem, se ocultam, pois entram no corpo e alteram sua química. Neville em depoimento recente afirmou com humor que “Cosmococa foi transmutação do vício em virtude”.

Um fluxo imitativo: cheirar pó em capas de discos se cruza com outro fluxo imitativo, o ato de desenhar e compor elementos para serem fotografados, que por sua vez se cruzam com proposta de chamar a participação do espectador, alvo de outras ações de Hélio para lixar unhas, dançar, relaxar em redes. Neville transpôs o uso da cocaína para outro contexto, transmutando-a em pigmento sobre superfícies diversas. A invenção não sai de um vazio, mas da composição de elementos díspares que propõem outros sentidos para as coisas que ali estão se configurando e possibilitam outros vínculos e associações.

“há vias diversas e uma porção de circunstâncias q vieram ocasionar q CC1 se fizesse a 13 de março de 73 e q digo ser quase-cinema pondo de lado a uniteralidade do cinema-espetáculo” (BLOCO -EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress. Programa Hélio Oiticica. Tombo nº. 301/74).

Decorrente de vias diversas, vai surgindo o primeiro bloco de experiências, o CC1. Os objetos de consumo da cocaína aparecem na maioria dos slides dos cinco primeiros Blocos CC: canivete, notas de dólar enroladas, espelho, pedra ágata cortada e polida, canudo de prata. O pó da cocaína raramente se apresenta pronto para ser inalado e a preparação é feita mediante um instrumento cortante qualquer. Os grãos maiores devem ser despegados com suavidade. Linhas retas devem ser desenhadas com este pó homogeneizado em uma superfície lisa e brilhante, de preferência um espelho, para que o aproveitamento dos pequenos cristais seja completo. O canivete é um elemento importante do ritual de aspiração da cocaína e aqui é usado por Neville de Almeida para desenhar as linhas de pó sobre as imagens.

Imagem de CC1 Trashscapes. Cortesia de Projeto HO e Neville D´Almeida

Navalha, lixas metálicas para unhas e canivete são objetos cortantes e talhos no corpo podem trazer filetes de sangue na pele. Hélio associou os grumos de cocaína jogados sobre as imagens ao sangue. “...o pó, a cocaína, quando é jogado é uma espécie assim de... parece assim, postas de sangue...” (Heliotapes: Para Augusto de Campos. Transcrição. Programa Hélio Oiticica. Tombo nº 505/74) Há uma atmosfera de sutil violência ao corpo, decorrente da presença de canivetes e referências a talhos e cortes na carne nos slides.

Três séries de imagens predominam em CC1: a do pôster feito com a imagem do Parangolé 30: Capa 23, M’Way Ke, de 1972, vestido por Luis Fernando, a do rosto de Buñuel que saiu na capa do suplemento semanal do New York Times, de 11 de março de 1973 e do disco de Frank Zappa, Weasels ripped my flesh, de 1970. Todas imagens contêm alguma referência a cortes no corpo.

Em relação ao pôster de CC1, não há nenhum corte, mas escreve Hélio: “OBS: NIPPLES: bico do peito, reconhecer que em TRASHISCAPES o bico do peito da foto-poster de Luis Fernando não se liga aos COKE-TRACKS-liames de membros , etc – mas a faca o toca: corte-carícia ao mesmo tempo”.(NTBK 2/73 Apontamentos. Programa Hélio Oiticica. Tombo nº 0189/73 11/42. Cosmococa, p.14/14)

Imagem de CC1 Trashscapes. Cortesia Projeto HO e Neville D´Almeida.

O gesto de passar a navalha nos olhos da foto de Buñuel para ajeitar os grãos da cocaína para as fotos foi paródia de uma das cenas mais conhecidas do cinema – uma navalha cortando horizontalmente um olho em Le Chien Andalou (1929), filme de Buñuel e Salvador Dali.

Cenas de O Cão Andaluz

O Cão Andaluz, conta Buñuel, “...nasceu do encontro de dois sonhos. Chegando à casa de Salvador Dali em Figueiras, contei-lhe que sonhara recentemente com uma nuvem fina cortando a lua e uma navalha fendendo um olho.Por sua vez ele me contou que acabara de ver em sonho, na noite anterior, uma mão cheia de formigas. Acrescentou: ‘E se fizéssemos um filme a partir disso?’ “ (L.Buñuel. Meu último suspiro. 2.ed. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p.142)

Para Hélio, os filmes de Buñuel com Dali não carregam “explicações para as relações entre as imagens justapostas, nem estéticas, nem nada porque a explicação já é dada como elemento parodiado”. (TIME IS ON MY SIDE, 16/06/1973. Programa Hélio Oiticica. Tombo nº316/73). A nuvem fina de cocaína corta o olho de Buñuel, foi ali colocada pela ponta da navalha, assim aparece uma das imagens de CC1 TRASHSCAPES, paródia da paródia dos sonhos citados.

Capa do LP de Frank Zappa Capa de Man’s Life de setembro de 1956

Outra imagem de corte no corpo aparece neste Bloco CC1. A capa do disco de The Mothers of Invention, mostra uma doninha arranhando um rosto, deixando linha de sangue. No entanto é o próprio arranhado que usa a doninha para raspar o rosto pois ela funciona como máquina de barbear. A cocaína, ou COKE-TRACKS, recobre o desenho em CC1. A paródia sobre uma paródia. Esta imagem do vinil se inspirou em uma capa de revista Man’s Life de setembro de 1956 que anunciava o conto “Doninhas rasgaram minha carne”. Zappa chamou o artista ilustrador Neon Pak (1940-1993), e mostrou-lhe a revista e perguntou: “Aqui está. O que você pode fazer que seja pior do que isso?” A resposta do ilustrador foi uma paródia das propagandas de aparelhos de barbear elétricos que se tornou a famosa imagem. (http://en.wikipedia.org/wiki/Weasels_Ripped_My_Flesh)

Uma imagem parodia a outra, sem que haja um original. Entretanto, as associações que propiciam não são fortuitas. Man’s life era uma revista norte americana de pulp-fiction cujos contos e reportagens enalteciam as qualidades masculinas em um período pós-II Guerra, em plena Guerra Fria. O homem heróico da revista se torna o homem “clean-cut” (expressão dos jovens contestadores norte-americanos para a geração que apoiava o chamado establishment ), escanhoado, que escolhe deliberadamente receber o arranhão de um animal feroz domesticado como um eletrodoméstico.

Obviamente não seria necessário conhecer todas estas procedências para inventar, as associações podem ser feitas por similitudes e diferenciações que, neste caso específico citado, brincam com os modelos enaltecidos pelos conservadores. Estas brincadeiras podem ser conceituadas como paródias. A paródia consiste em um elemento central dos procedimentos da arte do século XX e define-se como “uma forma de imitação caracterizada como uma inversão irônica, nem sempre às custas do texto parodiado. [...] é repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança”. (L. Hutcheon, Uma teoria da Paródia Trad. Tereza L. Perez. Lisboa: Edições 70, 1989. p.17).

Estes exemplos apresentam os indícios de alguns procedimentos da invenção, do cruzamento de fluxos imitativos que se saturam ou alteram mutuamente seus significados trazendo outros sentidos. As paródias carregam seus elementos componentes para outros contextos onde se assimilam a outros elementos, dando continuidade a fluxos de imitações ou desviando-os para outros caminhos. Um sonho de um cineasta percorre uma linha e nos encontra neste artigo, na ilustração do olho de uma foto deste mesmo cineasta cortado por uma carreira de cocaína.

Cosmococa – programa in progress marca-se por paródias e estas concernem à liberdade de inventar:

“1- tudo começou com q vim chamar de MANCOQUILAGENS[...]: invenção de Neville: paródia dos concerns dos artistas: a COCA q se dispõe em trilhas acompanha o pattern design q lhe serve de base: uma espécie de demi-sourrire para o q se conhecia por plágio: a MAQUILAGEM se esconde na própria disposição q assume como se fora parte do desenho: faz-nos pensar com sarcasmos DUCHAMPIANO quão longe e passados estão todos os conceitos q caracterizavam o caráter de autenticidade nas artes plásticas: [...] o comportamento – o pride de ser e estar solto/leve/livre para optar e INVENTAR – tornaram-se imprescindíveis a qualquer coisa q possa interessar a quem procure EXPERIMENTAR: a paródia com a ambivalência do conceito de plágio é portanto fundamental e sutilíssima” (BLOCO -EXPERIÊNCIAS in COSMOCOCA – programa in progress., Programa Hélio Oiticica. Tombo nº. 301/74)

Ao lado da paródia, o conceito de plágio foi uma das vias diversas que ocasionaram o Programa. Plágio assinala uma cópia de um modelo. Sua ambigüidade decorre de que o ato de copiar pode ser feito, ou com deslocamento de função e atravessamento de outras injunções, ganhando um sentido próximo da paródia. Ou como uma reiteração da importância de ser original para fins competitivos, atitude “sem nenhuma ligação com INVENTAR DESCOBRIR EXPERIMENTAR”. Hélio aqui se refere a artistas que copiam deliberadamente o que outro faz e saem alardeando como sendo sua criação original, atitude de trapaceiros, daqueles “que se apropriam de propriedades fixas para reforçá-las” e assim, se saírem bem. (G. Deleuze; C. Parnet. Diálogos. São Paulo: Escrita, 1998, p. 53).

Na arte — atividade marcada pela invenção constante, mas também pelo atravessamento de fluxos imitativos de toda ordem — uma avaliação da qualidade da produção tem sido tema constante de debate de críticos e artistas. Hélio Oiticica reitera em textos e proposições sua valorização dos procedimentos inventivos.

A diluição perturbava-o enquanto aspecto do apaziguamento de uma força que só uma invenção baseada na experiência e na vivência poderia manter. A Hélio importavam elementos que não se diluíam, elementos experimentais e vivenciados que sustentariam a obra como COISA NOVA. Este é o sentido de INVENTAR DESCOBRIR EXPERIMENTAR que aponta para elementos que escapam das capturas pois decorrem da experimentação e propiciam experiências reais, com corpos reais. Havia algo para além de inovação e virtuosidade de linguagem nas obras que realmente interessavam, algo para rachar a linguagem. Dinamite?

4. Heterotopia de guerra

Rachar as palavras, rachar a linguagem nos interstícios das imagens, sons e sensações em cada Bloco – Experiência de Cosmococa, programa in progress. A arte aqui ultrapassa linguagem e se compõe com enunciados imperceptíveis, “nitroglicerina” instável e perigosa. A coisa-obra, carregando as paródias e seus arquivos, os cenários, as trilhas sonoras, desdobra-se em um lugar, recorta e ocupa um espaço. Assim, Cosmococa - Programa in progress instaura o encontro entre elementos heterogêneos, pessoas de fora, o espaço e os membros da instituição onde os blocos são montados, as determinações e instruções de Hélio e Neville. Heterotopia de invenção.

Para que não se perca a dimensão libertária destes blocos heterotópicos, recorre-se aqui à noção de máquina de guerra que possibilita decodificar, captar a passagem de algo, mesmo imperceptível, que desmonta a identidade plena, os códigos bem postos. Máquina de guerra assinala que há uma exterioridade em relação ao aparelho de Estado, exterioridade que escapa constantemente da interiorização territorial que o aparelho estatal exige para ser soberano. (G.Deleuze; F.Guatari. Mil Platôs. V.5, trad. Peter Pal Pélbart, São Paulo: 34, 1997. p.23).

Devido à capacidade de agenciar linhas de fuga e conectá-las ao exterior, a máquina de guerra sofre constantes, e muitas vezes bem sucedidos, ataques de captura por parte do Estado. Todavia, no instante de ser capturada, a máquina de guerra se metamorfoseia em outra coisa, irredutível, lança longe seus dardos e escapa. Há portanto um constante movimento de captura e fuga, uma guerra permanente entre vontades, um incessante confronto de forças.

A máquina de guerra se relaciona com um agenciamento que nunca se fecha sobre uma forma de interioridade ou em um território: o nomadismo. Há um conflito nômade x mundo sedentário, no qual o sedentário seria aquele que procura sempre codificar a vida por meio de leis, instituições e o nômade percorre seus trajetos fora da Moral, fora dos traçados do Estado, ignora a luta pelo reconhecimento por critérios universais ou tidos como tal, ou por um exercício de poder nos moldes sedentários. Não se trata de um dualismo: ou sedentário ou nômade, mas planos diversos que se interceptam. Não há ocupação de espaços separados, ambos estão no mesmo lugar, só que vivendo em níveis diferentes e sem se complementarem. Interessa aqui o traçado real das situações de tensão.

Arte nômade e arte sedentária podem estar sob um mesmo teto, postadas lado a lado num mesmo museu ou galeria. Além disso, um artista, na medida em que escapa da própria identidade sedentária de domesticador de imagens (Idem, Ibidem, p. 45) e se articula com uma exterioridade, alterando seu percurso sobre linhas de fuga desconhecidas, neste momento, está atravessado pelo nomadismo. Até que ponto este artista vai se manter à altura destas descobertas depende da capacidade em construir uma máquina de guerra capaz de agenciar linhas de fuga liberadoras e guerreiras.

O artista nômade se deixa levar pelas linhas de escape para fora das identidades e categorizações e inventa modos de existência. Existências que funcionam como máquina de guerra não apresentam alternativas aos modelos de subjetivação assujeitada do Estado, mas carregam a força da exterioridade “que destrói a imagem e suas cópias, o modelo e suas reproduções, toda possibilidade de subordinar o pensamento a um modelo do Verdadeiro, do Justo ou do Direito.” (Idem, Ibidem, p. 47)

Nos blocos-experiências de Cosmococa encontra-se um núcleo irredutível à captura pelo Estado e pelo modo de subjetivação necessário à manutenção da ordem universal do mundo e seus modelos. A experiência direta. A força disruptiva de questionar com o corpo, com a inscrição no corpo, a naturalidade de hábitos, de condicionamentos. A prática da liberdade, não liberdade idealizada, mas vivenciada em um espaço heterotópico, conectada com o cosmos. Heterotopia de guerra.


Post Scritptum

“O que é isto? Trinta anos de espera! Por incrível que pareça, esta demora... O mundo teve que evoluir para esta obra aparecer”

Não foi exatamente uma “evolução do mundo” que fez com que Cosmococa “aparecesse”, mas o deslocamento das técnicas de poder da sociedade disciplinar para as estratégias da sociedade de controle. Participação contínua, flexibilização das disciplinas, ênfase no aprendizado constante mediante programas estruturados, vigilância por meios eletrônicos, circulação veloz de informações, estas são algumas práticas do controle que, nestes trinta anos, potencializaram os dispositivos de segurança.

Cosmococa - programa in progress, com seus blocos e textos e experimentações, envolvendo ou não o outro, carrega em seus interstícios uma análise de forças que, em 1973, ainda estavam “batendo na porta”. E ao mesmo tempo, já propõe experimentação com as linhas de resistência a este “novo monstro”: o controle. O controle fora percebido e descrito, ainda nos anos 1970, por W. Burroughs — um dos artistas pensadores incorporado por Oiticica — e posteriormente analisado por Deleuze. (Cf. Deleuze. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. Conversações, São Paulo: 34, 1992)

MEU SONHO é q COSMOCOCA a cada fragmento se modifica e acaba por formar como q uma GALÁXIA de INVENÇÃO de manifestações individuais poderosas:

(Vendo um Filme de Hitchcock, 31/03/1974. Programa Hélio Oiticica. Tombo 0318/74)

Na perspectiva das resistências e da liberação, em vez de tornar-se paradigma da história da arte, interessa muito mais que Cosmococa - programa in progress mostre seu caráter intempestivo, capaz de facultar tanto contraposições ao controle e às forças reativas, quanto experiências efetivas de liberdade. Este caráter se refere a mudanças de atitudes e invenção de modos de existência como arte.

Beatriz Scigliano Carneiro é bacharel, mestre e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP. Em 2004, publicou o livro Relâmpagos com claror: Hélio Oiticica e Lygia Clark, vida como arte, pela Editora Imaginário, com auxílio da FAPESP. Atualmente é professora pesquisadora do Projeto PRODOC/ CAPES do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Participa do Nu-Sol, Núcleo de Sociabilidade Libertária (http://www.nu-sol.org), vinculado ao citado programa.

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